domingo, novembro 14, 2010

Os Justos *

Ética da inteligência coletiva

* A Inteligência Coletiva, por uma antropologia do ciberespaço, Pierre Levy, tradução Luiz Paulo Rouanet, São Paulo: Edições Loyola, 6a. ed. 2010, capítulo 1, p. 35-36

Gênesis, capítulos 18 e 19. Um grande clamor se ergue contra Sodoma e Gomorra devido a seus pecados. Tendo Deus resolvido destruir essas cidades, nas quais se cometiam muitas injustiças, decide falar primeiro a Abraão. Embora, diante de Deus, não passe de poeira e cinzas, o patriarca enceta com o Eterno uma extraordinária sessão de negociação: "Talvez haja
cinquenta justos na cidade! Vais de verdade suprimir esta cidade, ou perdoá-la por causa dos cinquenta justos que ali se encontram? Sucederia ao justo o mesmo que ao culpado?”. Deus concede a Abraão a salvação da cidade, caso ali se encontrassem cinquenta justos. Mas o patriarca insiste e continua a negociar a salvação da cidade por quarenta e cinco, depois trinta, vinte e, finalmente, por dez justos apenas.

Ao cair da noite, dois anjos chegam às portas de Sodoma. Nada, em sua aparência, indica que sejam enviados de Deus. Para todos, são pessoas de passagem, viajantes desconhecidos. Lot, que estava sentado à entrada da cidade, convida esses estrangeiros à sua casa, dá-lhes de comer e trata-os com perfeição, segundo as regras da hospitalidade. Eles ainda não haviam se deitado quando a população de Sodoma se reúne em torno da casa de Lot e pede para ver os estrangeiros, “para deles abusar”. Lot se recusa a entregar seus hóspedes; chega a oferecer em troca suas filhas ao populacho encolerizado. Mas eles não querem saber. A demonstração permitiu contar o numero de justos em Sodoma: apenas um. Os anjos organizam a fuga de Lot e sua família. Assim que eles partem, a cidade é destruída.

[...] O que o próprio texto mostra, com efeito, não é tanto um princípio transcendente do bem e do mal quanto a força de pessoas vivas e ativas, os “justos”, capazes de trabalhar para a existência do mundo humano.

Se considerarmos a mulher de Lot sua “metade”, seu destino ilustra a tentação do justo de demorar-se no julgamento, mais do que de acolher o outro humano. Em sua mulher, Lot se identifica ao juiz, ou mesmo ao princípio abstrato da justiça, em vez de continuar a ser um justo vivo. A mulher de Lot volta-se para contemplar a fornalha em que agonizam os habitantes das cidades e, ao fazê-lo, reifica uma prática de “valor” transcendente. Os justos fazem viver, os juízes se petrificam. A todo momento o justo pode se esquecer de si próprio e transformar-se em estátua de sal, rígida como a justiça.

É de supor que a barganha entre Deus e Abraão ocorre o tempo todo e para todas as cidades. Se o mundo humano subsistiu até hoje, é porque sempre houve um número suficiente de justos. Porque as práticas de acolhida, ajuda, abertura, cuidado, reconhecimento e construção, afinal, são mais numerosas ou mais fortes que as práticas de exclusão, indiferença, negligência, ressentimento, destruição... Se os pais não amassem seus filhos, se as pessoas passassem seu tempo exclusivamente tendo inveja umas das outras, abusando umas das outras, se matando, a espécie humana não teria sobrevivido. A chuva de enxofre e de fogo que queima Sodoma e Gomorra não cai do céu, mas sobe das próprias cidades: são as labaredas da discórdia, da guerra, das violências a que se entregam os seus habitantes. Mas nem todas as cidades foram destruídas, e nossa presença na Terra prova que, até o momento, e globalmente, a “quantidade de bem” foi superior à “quantidade de mal”. Essa avaliação não visa de modo algum justificar os sofrimentos e reveses da humanidade pelo “bem” eventualmente obtido. Destina-se apenas a equilibrar a publicidade que se dá ao mal pela consideração de um fato, de um resultado bruto: continuamos presentes. A megalópole humana ainda não foi destruída.

[...] O mal é mediado, mas os justos se ocultam, discretos, anônimos ignorados. Mas, então, como reconhecê-los? O texto mostra um grande tribunal, um juízo final, uma ponderação das almas em alguma balança derradeira? Não, mas migrantes que percorrem o mundo e se apresentam, uma tarde, cobertos da poeira da estrada, na entrada de uma cidade. Só se pode reconhecer os justos andando pela região.

Não existe justiça transcendente, nem onisciência que permita a seleção. É necessário seguir os nômades. Eles vão ao encontro dos invisíveis que sustentam o mundo. Descobrem os justos que tecem na sombra o laço social.

(Grande saber!)

domingo, novembro 07, 2010

Deleuze, doença e literatura

Escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa: em ambos os casos é o eterno papai-mamãe, estrutura edipiana que se projeta no real ou se introjeta no imaginário.
É um pai que se vai buscar no final da viagem, como no seio do sonho, numa concepção infantil de literatura. Escreve-se para pai-mãe.
[...]
Não se escreve com as próprias neuroses.

A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado.

A doença não é processo, mas parada de processo, como no "caso Nietzsche". Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo.


"O mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem".

A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: não que o escritor tenha forçosamente uma saúde de ferro [...], mas ele goza de uma frágil saúde irrestível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe contudo devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis.

Gilles Deleuze - A literatura e a vida "in" Crítica e Clínica, São Paulo: editora 34, 1997 - p.12-13-14

A literatura de uma língua é sua proteção

...diz a filósofa e pensadora Olgária Matos, em seu belíssimo ensaio Democracia midiática e República cultural(*). E prossegue: "Se o interesse pela literatura diminuir ou desaparecer, é a própria língua que estará ameaçada de extinção." Com outro olhar, o escritor Mario Vargas Llosa sai Em Defesa do Romance na edição deste mês de Piaui. E conta que... "Uma pesquisa organizada recentemente pela Sociedade Geral de Autores Espanhóis forneceu um dado alarmante: metade dos habitantes daquele país jamais leu um livro." Qual seria o resultado de uma pesquisa similar, se fosse levada a cabo no Brasil, hoje? Receio que nao seria muito diferente, ou melhor.
Como a filósofa, Vargas Llosa deixa uma mensagem de humanização, destacando que "a especialização, característica da ciência e da técnica, leva à incomunicabilidade social, à fragmentação do conjunto de seres humanos em guetos culturais de técnicos e especialistas, enquanto que os leitores de Cervantes, Dante, Shakespeare ou Tolstoi, sao ligados por "denominadores comuns da experiência humana, graças aos quais os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte
".
Vale a pena!
(*)
"in" Discretas Esperanças São Paulo: Nova Alexandria, 2006 p.24

Joyce e a formação em Clongowes Wood


Em primeiro de setembro de 1888, com a idade de "seis-e-meia", Joyce foi levado pelos pais para se matricular na melhor escola preparatória católica da Irlanda, Clongowes Wood College, situada cerca de trinta quilômetros a oeste de Dublin, num campo perto de Clane.


A mãe o beijou, chorou e recomendou-lhe que não falasse com os meninos grosseiros; o pai deu-lhe dez xelins, lembrou-lhe que fora em Clongowes que seu bisavô, John O' Connell, dirigira um discurso ao Libertador, cinquenta anos antes, e disse-lhe que nunca delatasse um colega.

Exceto por um pequeno período, os jesuítas, que dirigiam Clongowes, viriam a ser os mestres de Joyce até ele terminar a sua educação universitária, em Dublin. Ele nunca se recuperou dessa instrução.

Conforme Buck Mulligan diz a Stephen em
Ulysses, "você tem por dentro esse maldito sangue jesuíta, só que ele foi injetado do lado errado".
Mais tarde, Joyce viria a louvar os jesuítas por terem lhe ensinado a "ajeitar as coisas de tal forma que elas se tornam fáceis de examinar e julgar".


James Joyce, Chester G. Anderson, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1967, p. 16-17