segunda-feira, janeiro 03, 2011

Le Scénario Freud

Em 1958, o cineasta americano John Huston pede a Jean-Paul Sartre que escreva um roteiro sobre Freud, mais precisamente, segundo uma tradição muito hollywoodiana, sobre o tempo "heróico" da descoberta, aquele "tempo forte" em que Freud, renunciando à hipnose, inventa progressivamente, dolorosamente, a psicanálise.
" A idéia básica, a de Freud aventureiro, é minha. Eu queria me concentrar nesse episódio à maneira de uma história policial", dirá mais tarde Huston (entrevista a Robert Benayoun, Positif no. 70, junho de 1965).
[...] No fim de 1958 Sartre envia a Huston uma sinopse intitulada simplesmente Freud, 95 páginas datilografadas em espaço dois. Esse "primeiro trabalho", com data de 15 de dezembro, é aceito. No ano seguinte, ele escreve o roteiro. [...] Finalmente, o roteiro será consideravelmente reduzido e transformado por profissionais do cinema, Charles Kaufmann e Wolfgang Reinhardt, e Sartre exigirá que seu nome não figure nos créditos.

[...] Na história desse roteiro, podemos reconhecer um comportamento habitual de Sartre. De início, uma simples encomenda. Depois o trabalho começa. Um trabalho de que ele se apropria, alegremente, e que se apropria dele, mas antes como um jogo, um desafio, do que como uma obra. Nenhuma preocupação realística de medida: se o roteiro original tivesse sido aceito sem alteração, teria dado um filme de cerca de sete horas. Por fim, renúncia voluntária a todo direito de "paternidade" e desinteresse total pelo resultado final: Sartre terá pelo menos visto o filme?

[...] Quais foram as fontes de Sartre?
Exatamente em 1958, é publicado em tradução francesa o primeiro volume da grande biografia de Freud escrita por Ernst Jones - volume que trata do período que interessa a Huston e a Sartre, o que se refere ao "jovem Freud" e que termina com a publicação, consecutiva à morte do pai, de A interpretação dos sonhos. Dois anos antes, tinham sido publicadas, sob o título O nascimento da psicanálise, as cartas recém-descobertas de Freud a Wilhelm Fliess e os manuscritos anexados à correspondência, que constituíram, mesmo para os especialistas, uma revelação.
[...] Não há a menor dúvida de que essas leituras transformaram radicalmente a imagem que Sartre fazia de Freud. [...] Faziam da psicanálise o produto de um longo trabalho empreendido sobre si mesmo e sobretudo - o que tinha muito mais valor aos olhos de Sartre - contra si mesmo, com avanços, impasses, recuos. Em suma, essas leituras permitiram a Sartre ver, na sucessão das hipóteses formuladas, na modificação às vezes drástica da teoria (basta lembrar o abandono da teoria da sedução), algo inteiramente diferente de um exercício puramente intelectual ou do resultado empírico de uma recensão minuciosa dos fatos: tratava-se antes do próprio movimento de uma cura de que Freud, assim como os neuróticos que ele tratava como podia, e somente como podia, era o objeto. Freud, médico doente, teria quase a contragosto descoberto a psicanálise - ao mesmo tempo o método e seus objetos - para curar a si mesmo, para resolver os próprios conflitos. O Freud revelado a Sartre naquele ano prenuncia o seu O idiota da família: neurose e criação são interligadas, e o são porque a neurose já é uma criação, mas privada, e privada de sentido para seu autor porque escrita numa língua cuja chave ele não possui.
Neurose e criação: tema de dissertação na medida em que opomos entidades, mas caminho a ser sempre reaberto em seu "universal singular", caminho que Sartre sempre reabriu, de Baudelaire a Flaubert, passando por Saint Genet e As palavras.

J.B. Pontalis, prefácio a Freud além da alma, Jean-Paul Sartre Rio de Janeiro: Nova Fronteira 2005 p. 7-15

Nenhum comentário:

Postar um comentário